O processo eleitoral brasileiro, com uso de urnas eletrônicas, é confiável? Diante de um quadro de escândalos e denúncias de corrupção nos governos é possível imunizar o processo eleitoral de práticas irregulares de compra de votos? Qual o papel da imprensa neste processo? É possível haver eleição democrática sem controle público dos meios de comunicação? Estas e outras importantes questões são abordadas pelo juiz Márlon Reis, coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral nesta coletiva que antecede o 2º turno das eleições brasileiras.
Autor do livro “Uso Eleitoral da Máquina Administrativa e Captação Ilícita de Sufrágio” (Editora da Fundação Getúlio Vargas) e Juiz de Direito no Maranhão, Márlon Reis é diplomado em Estudos Avançados em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidade de Zaragoza, Espanha.
E-FENAJ – Rosane Arcanjo Pinheiro, que integra a Associação Maranhense de Imprensa (AMI), faz referência ao livro “Uso Eleitoral da Máquina Administrativa e Captação Ilícita de Sufrágio”, que o senhor lançou recentemente, e aponta como um dos avanços no combate às fraudes eleitorais a aprovação da Lei 9.840. Ela pergunta: de que forma a imprensa vem colaborando para conscientizar a população e as autoridades públicas neste processo?
Márlon Reis – Chamam a minha atenção em especial duas posturas diferentes. De um lado, há setores importantes da grande imprensa que, assumindo uma postura parcial, repercutem denúncias graves atribuídas a um dos lados da política, que sem embargo merecem a publicidade que ganharam e devem chegar ao conhecimento do público. Essa posição contribui para a transparência, revelando ações que, acaso comprovadas, podem implicar em sério comprometimento do processo eleitoral; mas deixa de surtir todo o efeito esperado pela evidente vinculação a lados interessados politicamente no resultado da divulgação dessas denúncias. Uma outra posição é a dos veículos de comunicação que tratam de divulgar ações como a dos movimentos sociais que hoje se organizam para se contrapor às mazelas que acometem o nosso processo eletivo. Este é o caso do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, rede que congrega as organizações da sociedade civil que em 1999 obtiveram a aprovação da Lei nº 9.840, que prevê a cassação de diplomas eleitorais de candidatos descobertos praticando a compra de votos e o uso eleitoral da máquina administrativa. Essa segunda postura contribui a para a formação de uma “cultura” de aversão à falta de ética na política, propiciando o fortalecimento dos meios sociais necessários ao aprofundamento da nossa experiência democrática, ainda pendente de concretização.
E-FENAJ – A jornalista Edvânia Kátia, integrante do Fórum Nacional de Comunicação e Justiça e também da Associação Maranhense de Imprensa considera que os profissionais da mídia cumprem papel fundamental na tarefa de conscientizar a sociedade sobre a necessidade de fiscalizar o comportamento dos candidatos no processo eleitoral e cobrar postura ética. Mas, em meio aos ataques que a profissão de jornalista tem sofrido com a ameaça da desregulamentação profissional, como é o caso da ação que pede o fim do diploma, ela lhe questiona. A sociedade não fica desamparada se aqueles que vierem a exercer a profissão não estiverem qualificados para o seu exercício?
Márlon Reis – Como cidadão, tenho procurado acompanhar o debate em torno da regulamentação da profissão de jornalista e digo antes de mais nada que sou um entusiasmado defensor da idéia. Não tenho dúvidas de que isso trará benefícios não só para toda a sociedade brasileira como, muito particularmente, para os próprios exercentes dessa atividade tão nobre. A regulamentação será uma medida legítima que tornará ainda mais efetivo o respeito à liberdade de imprensa, a qual deve ser exercitada sob parâmetros éticos e de formação como qualquer outra atividade humana.
E-FENAJ – A jornalista Vânia Maria, de Recife, nos encaminhou duas perguntas. Por que, apesar de tanta falácia, revolta de alguns éticos, propagandas conclamando o povo a escolher bem seus candidatos, a população brasileira continua votando em corruptos, ladrões confessos ou pessoas envolvidas em falcatruas? Deixar roubar, fazer vista grossa às indecências de amigos/funcionários, é tão grave quanto meter a mão no alheio. Nossa população não se interessa em pesquisar, acompanhar o desempenho dos que estão no poder. Não lembram nem mesmo o nome de quem votou na última eleição. Será que o povo brasileiro não tem mesmo jeito?
Márlon Reis – Vânia Maria, seus questionamentos nos remetem a uma reflexão sobre as origens da cultura política de nossa população. Não tivemos, desde os primórdios, uma experiência de acessibilidade ao Estado. “Feudalizado” por uns poucos, o Estado foi sempre fonte de favores por um lado e de perseguições aos adversários por outro. Mesmo as eleições surgiram no Brasil, segundo Raymundo Faoro, como uma “doença importada”, prestando-se a dar outra roupagem às formas já insubsistentes de ocupação e exercício do poder político. Ainda hoje grande parte do nosso eleitorado se sente fora do jogo político, do qual espero pouco ou quase nada, e se contenta em não ser molestado ou receber porções diminutas daquilo que o Estado pode propiciar. Num quadro como esse, esperar que esses votantes tenham um olhar crítico sobre a conduta infelizmente é um pouco demais. É como se estivessem um degrau a menos na escala do desenvolvimento das convicções políticas. James Scott nos apresenta um quadro em que o voto se dá por imposição, por negociação ou como expressão de aprovação ou censura. A primeira posição é a de menor liberdade. A última corresponde ao que comumente denominamos “voto consciente”. Milhões de eleitores brasileiros se encontram desafortunadamente a meio termo. Pretendem, com sua expressão política, nada mais que recobrar algum proveito de uma situação que, em outra hipótese, pensam, seria sempre desfavorável.
E-FENAJ – O coletivo Oito de Dezembro de Comunicação e Cultura, de Vargem Grande Paulista, pergunta: o senhor acredita que haverá democracia neste país sem mecanismos de controle público dos meios de comunicação?
Márlon Reis – A pergunta faz remissão ao que comecei a dizer quando da resposta à indagação de Edvânia Kátia. A regulamentação profissional me parece a alternativa constitucionalmente mais válida e politicamente mais legítima para que os próprios jornalistas componham o corpo de normas éticas cujo reconhecimento e exigibilidade é tão essencial à validação do princípio fundamental da liberdade de imprensa. Esse pode ser o canal para a veiculação das ansiedades de setores esclarecidos da sociedade brasileira, que por vezes se encontram sem mecanismos de veiculação de lesões tão drásticas como aquelas que atingem mesmo os direitos humanos mais fundamentais. Não se trata de defender qualquer forma de censura política, mas de dotar a sociedade, por força da própria regulamentação profissional, mais protegida contra ações não acobertadas pela liberdade dos meios de comunicação.
E-FENAJ – Flávio Henrique de Barros, jornalista Free lance de Niterói, encaminhou algumas considerações e várias perguntas. Vamos a elas. Mesmo com toda a propaganda positiva sobre a urna eletrônica, várias matérias publicadas continuam demonstrando o contrário, com base em experiências e conclusões de técnicos em centros e universidades dos Estados Unidos, origem da fabricação dessa urna eletrônica. Diante da contradição, quem estaria errado? Eles ou nós? Para combater a corrupção eleitoral não seria primeiro necessário dispor aos técnicos externos uma auditoria no programa da urna eletrônica antes e depois da eleição? Assim como o voto em papel na urna acompanhando o voto eletrônico? O fim do voto obrigatório é um incentivo ao voto ideológico? Concurso público para os cargos de desembargadores e ministros do STJ e STF não seria um incentivo à confiabilidade do sistema eleitoral, uma vez que os mesmos ocupam cargos nos tribunais eleitorais e são nomeados politicamente?
Márlon Reis – O aumento no volume da insatisfação de segmentos esclarecidos da sociedade brasileira para com os instrumentos de monitoramento dos meios eletrônicos de votação terá de fazer com que a Justiça Eleitoral estude mecanismos para aprimorar o modelo vigente. Não tenho dúvidas quanto aos avanços propiciados pela informatização do voto. Mesmo o debate sobre a compra de votos e o desvio dos aparatos administrativos para fins eleitorais só ganhou corpo após a superação do voto cedular. Antes dessa evolução, já era muito esperar por votações não desvirtuadas pela falsificação manual dos mapas eleitorais, em operações que ficaram conhecidas como o denominado “mapismo”. Mas vejo que a Justiça Eleitoral não deve adiar o debate sobre o aperfeiçoamento do sistema eletrônico de votação, sob pena de ver tisnada num futuro próximo a legitimidade que tanto penou para conquistar. Para isso, deverá prever métodos de monitoramento mais eficientes, que prevejam a participação mais efetiva não apenas das representações partidárias, mas até mesmo da sociedade em geral. Uma via para isso pode ser abertura de maior número de espaços para a realização de audiências públicas. A impressão do voto, como forma de oportunização da recontagem, também me parece uma medida importante. Quanto à forma de constituição dos tribunais eleitorais, cresce também o questionamento do tema na sociedade brasileira. A Justiça Eleitoral precisa analisar esse tema, sob pena de vir a ser questionada em sua própria sobrevivência institucional.
E-FENAJ – Guga Braga, Supervisor de Jornalismo da Rádio Cultura FM de Adamantina (SP), quer saber se o senhor acredita que o povo brasileiro sabe votar com a consciência que um regime democrático exige. Ele questiona, ainda: as eleições no Brasil perderam o sentido democrático e viraram apenas o momento de gerir os interesses partidários dos coronéis da política? O Brasil tem povo ou tem público? O senhor acredita no fim da corrupção na política brasileira?
Márlon Reis – A superação dos atuais dramas que comprometem as nossas eleições demandará soluções complexas. Não basta relacionar corrupção eleitoral a pobreza, pois alguns segmentos das camadas sociais desprivilegiadas demonstram aptidão plena para um exercício elevado dos seus meios de expressão política quando se encontram devidamente mobilizados. Em meio à desmobilização e ao individualismo, mesmo pessoas que vivem em espaços sociais e intelectuais mais privilegiados podem sucumbir ante a visão da política como espaço negocial. Por isso vejo sempre a mobilização, o pertencimento a redes sociais voltadas à defesa de interesses, como uma forma de qualificar a participação no mundo da política. Mas as instituições públicas precisam igualmente passar por uma mutação. A Justiça Eleitoral ainda é muito morosa. É preciso que as questões relativas à qualidade dos votos obtidos – se provêem ou não de atos de fraude ou corrupção – seja superada quando muito até os primeiros meses do exercício dos mandatos. O parlamento recém eleito conviverá com muitos dos seus quadros situados em meio a graves acusações relacionadas às formas pelas quais obtiveram seus votos. Isso descredibiliza as próprias casas parlamentares. Também no tocante às alterações institucionais, sou um defensor ardente da reforma política. O modelo atual estimula a corrupção. Faz de deputados e senadores meros “despachantes” de interesses materiais locais, fragilizando o seu fundamental papel de formadores de políticas públicas em abstrato. A legislação eleitoral, por outro lado, favorece uma disputa interna que leva os candidatos a buscar a superação de membros do próprio partido, destruindo as estruturas partidárias e estimulando a compra de votos. A conseqüência disso é que os parlamentos são amontoados de pessoas, em lugar de espaços de disputa de bandeiras partidárias. Como tive oportunidade de afirmar no último Congresso da FENAJ, em Ouro Preto, a corrupção praticada no Brasil possui uma matriz constitucional. Precisamos arrancar da nossa Lei Fundamental os sedimentos que nos ligam à época das Capitanias Hereditárias.
E-FENAJ – Obrigado por sua atenção, Dr. Márlon Reis. O próximo convidado da coletiva da FENAJ é Celso Schröder, Secretário Geral da FENAJ e representante da entidade na Coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que fará um balanço da 13ª Plenária do Fórum, realizada em Florianópolis de 20 a 22 de outubro. Para participar, encaminhe perguntas para boletim@fenaj.org.br até as 18h do dia 7 de novembro, especificando, na linha de assunto, “Entrevistas da FENAJ”. A entrevista será disponibilizada no site da Federação no dia 10 de novembro.





