* Rose Nogueira
Eduardo Pinheiro dos Santos tinha 30 anos e era motoboy. Foi levado por um grupo de nove policiais militares para o quartel da PM do bairro da Casa Verde, em São Paulo, após uma discussão na rua. Deveria ter ido para a delegacia que fica ao lado. Mas não. Segundo as testemunhas, Eduardo foi torturado até morrer. Isso aconteceu no dia 10 de abril. Levaram Eduardo para o pronto-socorro de Santana, como se tivessem encontrado seu corpo na rua. Até aqui, a história de Eduardo parece relato de 40 anos atrás, semelhante ao trágico fim de muitos presos políticos.
Mas há uma diferença daí pra frente. É que, depois da denúncia e depoimento das testemunhas, o caso foi parar na imprensa e os nove PMs foram presos. Maior diferença aconteceu na terça-feira, 27, com uma carta de desculpas do comandante geral da Polícia Militar, coronel Álvaro Camilo, de próprio punho, endereçada à mãe do rapaz, a pedagoga Elza Pinheiro dos Santos, onde ele qualifica os criminosos de insanos e desumanos. Na TV, a mãe agradece e lembra que nada trará o filho de volta; o irmão falou na “dor que não passa”.
É essa mesma dor que não passa que ainda sentem as mães e os familiares dos assassinados nas salas de tortura na ditadura, e que agora querem a responsabilização dos torturadores. Como mortos sem sepultura, os desaparecidos não têm direito ao acompanhamento dos seus restos por quem ainda lhes procura. Estão nos cartazes espalhados pelo país, uma forma de lembrar que coisa horrível como seu martírio nunca mais deveria acontecer. Mas desgraçadamente acontece.
Uma das razões, se é que isso pode ser explicado, é a impunidade histórica da tortura no Brasil – com raríssimas exceções. Processos são arquivados, autores acabam absolvidos “por falta de provas”. A vítima é culpada por sua própria morte, ré depois de morta.
A segurança pública é um direito. Mas agente armado do Estado que se transforma em torturador, dono da vida e da morte, é fator de insegurança. Um torturador se desumaniza e, consequentemente, não vê no outro um semelhante. Não reconhece o outro como de sua espécie, como fazem os animais. Um torturador é o criminoso que precisa destruir o outro e, mesmo quando o deixa vivo, tem a necessidade de acabar com o que lhe sobra de humanidade. É por isso que a dor da tortura não passa, ela é humilhante demais. Por isso é crime de lesa-humanidade.
Trinta anos depois da lei de Anistia, escrevo na véspera do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da interpretação do texto, pedida pela Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB. A lei da Anistia de 1979 absolve os torturadores? E por que? Na desculpa esfarrapada de “anistia para os dois lados”, é preciso lembrar que um deles já foi penalizado, passando pelas bárbaras sessões de tortura e muitas vezes pagando com a própria vida, sem contar os anos de prisão ou exílio a que foram submetidos os que sobreviveram, sem contar a destruição de suas famílias, suas carreiras, seus bens, seus talentos e tudo o que poderiam oferecer à sociedade.
Diante disso é impossível esquecer as entrevistas feitas por Geneton Moraes Neto para a Globonews, com dois generais autoritários e octogenários que já detiveram tanto poder, no Brasil, que um deles, em Brasília, saiu à rua chicoteando os carros que buzinavam comemorando a eleição indireta de Tancredo Neves. Quem não se lembra? Disse na entrevista que soube com antecedência do atentado do Riocentro, em 1981. “Avisar a quem?” – perguntou ao repórter, que lhe questionou por que não tentou impedir. Mais: disse que chegou a se encontrar com dois agentes do Dói-Codi, que lhe confessaram preparar um segundo atentado. Mas ele, general, não concordou, e os atentados não aconteceram. Simples assim. Impunemente.
O outro general, também octogenário, orgulhou-se ao dizer que, após a morte de Tancredo Neves, muitos deputados e senadores, e até o vice-presidente recém-eleito, José Sarney, esperavam uma palavra sua para saber o que fazer. “Se o presidente está impedido, assume o vice!” – ele disse ter declarado com força, como uma ordem, depois de circular por uma sala de Brasília entre os políticos obedientes. Falou como se isso fosse uma coisa do outro mundo, como se cumprir a lei, mesmo a lei da ditadura, fosse a exceção e não a regra.
Negou que houve tortura no Dói-Codi carioca, que ele dirigiu nos anos 70. Patético, para dizer o mínimo. Com certeza nunca pensou escrever à mãe de algum morto ou desaparecido naqueles tempos. Que diferença do coronel Camilo!
Por honra à humanidade, portanto, é preciso responsabilizar os torturadores, os de ontem e os de hoje.
Enquanto isso, 25 pessoas foram assassinadas na Baixada Santista em oito dias com características de execução. Houve toque de recolher, as ruas ficaram desertas. Muito parecido com os crimes de maio de 2006. O Estado pode ser omisso, mas a mãe não se calou: “Ele não era um morto a mais. Era o meu filho.” Benditas mães!
* Diretora do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e membro do grupo Tortura Nunca Mais/SP
Publicado no site do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo em 29/04/2010





