*Edvânia Kátia As recentes polêmicas envolvendo os jornalistas brasileiros sobre a exigência do diploma de nível superior para o exercício profissional e o projeto de lei que pretendia nova regulamentação para a profissão de jornalista, atualizando e ampliando as funções – que na sua essência garantia o diploma de jornalismo para o exercício da atividade -, carece de um debate mais aprofundado a colisão dos direitos e garantias fundamentais. Debate este que aparentemente coloca em confronto “a livre manifestação do pensamento” e ” o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, bem como os conceitos de liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Avançar nesta questão é garantir que o debate sobre a liberdade de imprensa não tenha dois pesos e duas medidas, na qual retira-se dos jornalistas o direito de ter sua profissão regulamentada, com o fim da obrigatoriedade do diploma, mas pode-se assegurar o direito à privacidade sob o pretexto de prejuízos causados à intimidade, à honra e à imagem, a exemplo dos casos de censura prévia que já foram julgados. No mínimo, haveria uma contradição. Acabar com a obrigatoriedade do diploma implica assegurar a todos o direito de dizer o que querem através dos meios de comunicação, sem respeito a nenhum limite ético, como se o direito fosse irrestrito. Suponho que se é assim, então, devem ir por água abaixo todas as ações de dano moral. Foi o conflito entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa que deu à juíza Carla Rister, ao analisar pedido do Ministério Público Federal de São Paulo, os argumentos para negar a necessidade de qualificação superior para o exercício da profissão de jornalista, derrubando o diploma. Com coerência, o Tribunal Regional Federal de São Paulo restaurou, por unanimidade, o direito que os profissionais têm ao diploma de nível superior e a sociedade tem de ter uma informação de qualidade. Mas o processo está tramitando no Supremo Tribunal Federal a quem caberá a palavra final. Antes, porém, do julgamento do mérito da ação principal, a Ação Cautelar ajuizada pelo procurador-geral da República sob o argumento de que visa “evitar a ocorrência de graves prejuízos aqueles indivíduos que, em razão da tutela antecipada, confirmada em posterior sentença monocrática, estavam a exercer a atividade jornalística, independentemente de registro no Ministério do Trabalho ou de diploma de curso superior específico”, foi acolhida recentemente pelo ministro Gilmar Mendes e confirmada pela 2ª Turma do STF, que decidiram, por unanimidade, pela não obrigatoriedade para os precários que obtiveram o registro. Talvez possamos avançar no debate sobre direito à informação e direito à privacidade, ao definirmos os conceitos do que é liberdade de expressão, liberdade de imprensa e qual conflito há entre estas duas garantias constitucionais e uma outra garantia, que é a regulamentação profissional. A Constituição Federal prevê que todos têm o direito de manifestar seus pensamentos – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Diz também que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. No capítulo destinado à área da Comunicação Social diz que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Será que, “apesar do decreto da época da ditadura militar” ainda estar em vigor, a liberdade de imprensa está ameaçada? Para a juíza Carla Rister, sim. Para o TRF de São Paulo, não. Para o STF, ninguém sabe porque por enquanto só foi julgado o direito dos precários de continuarem com seus registros. Prefiro o posicionamento do TRF de São Paulo. O diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista e a regulamentação profissional ou sua atualização não se choca com a liberdade de imprensa. Apesar do decreto de 69 e uma nova legislação que possa surgir, o cidadão pode se manifestar através de vários meios, inclusive, por meio da própria imprensa via artigos e sendo fontes que opinam e têm seus posicionamentos publicados nas matérias. Se há posicionamentos que não são emitidos ou são vetados, por certo, não é o diploma ou a regulamentação profissional dos jornalistas que o impedem de sê-lo, mas a linha editorial dos veículos de comunicação. E a liberdade de expressão? Será que, apesar do decreto de 69, as pessoas foram proibidas de sair às ruas e pintar o rosto? O que dizer do impeachement de um presidente. Naquela época ainda não tramitava a ação que pedia o fim do diploma. Será que foram proibidas de fazerem suas apresentações artísticas, poesias, crônicas? Será que deixaram de fazer fotos nas ruas? Em quê o diploma e uma nova regulamentação para a atividade dos jornalistas pode impedir isso? Não é porque há o diploma que alguém será impedido no seu direito de liberdade de expressão, de sair às ruas, de manifestar seu pensamento e fazer fotos ou gravar imagens. Estou cada vez mais convencida de que está faltando é um debate conceitual. Dependendo dos seus interesses, grupos se apegam a sofismas e, com discursos carregados de preconceitos, apelam para o trauma deixado na época da ditadura militar de que tudo vai ferir a liberdade de imprensa. Falta debater os limites, a colisão dos direitos entre liberdade de imprensa e regulamentação profissional. O diploma de jornalismo e a regulamentação da atividade dos jornalistas e sua adequação às novas exigências da sociedade não impede ninguém de falar o que pensa, escrever o que pensa. Notícia é notícia, informação é informação. E embora tenham significados bastante parecidos, não são a mesma coisa. Quem sabe fazer notícia é jornalista. Nem toda informação é uma notícia. Nem toda informação precisa dos critérios de noticiabilidade ou de tratamento ético para ser transmitida. O direito à informação a que tantos se referem está relacionado ao direito à comunicação, ao direito se expressar, seja verbalmente, por escrito ou mesmo sem palavras ou falas, ou apenas no olhar. De fato, não precisa de diploma para dizer o que se quer, quando se quer e da forma que se quer. Só que o impacto de uma comunicação dentro de casa ou entre um grupo de pessoas não é o mesmo que uma comunicação difusa e heterogênea, por meio de veículos de comunicação. O diploma e a atualização da regulamentação de uma profissão não fere em nada o direito à liberdade de expressão. Fosse assim, também sob o pretexto de que minha liberdade de expressão está sendo ferida, posso ingressar com uma ação na Justiça solicitando ter o direito de proferir uma sentença porque também tenho o direito de expressar o que penso, em formato judicial. Ou solicitar na Justiça o direito de poder fazer o projeto arquitetônico da minha casa, a partir da minha liberdade de expressão. Se tenho criatividade e imaginação para fazer o projeto, não deveria, então, contratar um arquiteto, e ao fazê-lo estou inibindo a minha liberdade de pensar e expressar em um papel o que desejo? Mas defendo o contrário e como eu, sei que as entidades representativas dos jornalistas, como as entidades que saíram em defesa do diploma. Defendo que todas as categorias tenham as suas garantias resguardadas, para que se tenha um estado democrático de direito, respeitadas as especificidades de cada profissão, e para que estas profissões sejam fortalecidas. Não falo só do Jornalismo, falo de todas as profissões, tanto da área da comunicação como de outras áreas. Só para ilustrar o risco que corre a sociedade, relato processo que já tramitou no próprio STF, no qual três professoras do Mato Grosso do Sul reivindicaram o direito de dar aula nas escolas da rede pública sem apresentar o diploma de nível superior. A ministra Cármen Lúcia negou o pedido. Mas, a considerar pelo argumento de que nem todas as profissões exigem conhecimentos técnicos, éticos e científicos específicos, por que as impedir de dar aula, se pelo lado simplista da questão formos analisar que, considerando que elas passaram oito anos de suas vidas em uma escola como alunas e, portanto, provavelmente devem ter adquirido ao longo dessa trajetória conhecimento sobre Matemática, Física, Português e outras disciplinas. Não estariam elas capacitadas a darem aulas? Alguém pode responder. Mas a regulamentação dessa atividade não fere a liberdade de imprensa, enquanto que o diploma de jornalista vai impedir as pessoas de manifestarem livremente suas opiniões. Mas não podemos entregar nossas crianças a qualquer pessoa sem formação, assim como não podemos deixar a vida dos cidadãos à mercê de pessoas que podem até escrever bem, ter a bela voz e o belo rosto, mas, duvido muito, terão a preocupação de buscar os conhecimentos éticos necessários para o exercício da profissão. Que país estaríamos construindo no futuro? Só com a garantia da obrigatoriedade do diploma e da regulamentação profissional, os profissionais, de todas as áreas, poderão ter liberdade para exercer o seu ofício, sem o risco de verem a precarização das relações de trabalho acontecer diante dos seus olhos sem que possam nada fazer. Só assim, poderão estes profissionais atuarem pautados na ética do exercício profissional e comprometidos com o conjunto social. Que este debate sobre os direitos individuais e coletivos, sobre a colisão dos direitos fundamentais, ganhe as ruas. Que o Crea, OAB, conselhos, associações de juízes, promotores, procuradores, associações de bairro tenham disposição para debater. Esta não é e nunca será uma luta apenas dos jornalistas brasileiros, pautadas apenas em interesses corporativistas e de reserva de mercado. É antes de tudo um debate que envolve todas as profissões porque sem regulamentação toda a sociedade corre riscos. * Jornalista, integrante do Fórum Nacional de Comunicação e Justiça e da Associação Maranhense de Imprensa |