* Sérgio Luiz Gadini A polêmica em torno da desregulamentação profissional para o exercício do jornalismo no Brasil, a partir de uma tutela antecipada concedida por uma juíza substituta da Justiça Federal de São Paulo, em outubro de 2001, não configura uma situação isolada e tampouco dissociada do processo de desmonte do estado de direito, registrado no País com mais ênfase a partir do final da década de 1980. Privatizações, entrega de serviços públicos para gerenciamento privado, terceirizações ou a gradual ‘saída’ do Estado de iniciativas de interesse público integram um projeto de enfraquecimento da sociedade civil, e, em última instância, da condição de cidadania moderna. Aliás, a recente aprovação – pelo Congresso Nacional – de projeto que prevê a “flexibilização” de direitos trabalhistas é parte desse processo de ‘aniquilamento’ de direitos e garantias sociais de organizações da população brasileira. A iniciativa também não é inédita. Em 1990, o ex-presidente Fernando Collor de Mello encaminhou projeto extinguindo a obrigatoriedade da exigência de registro e, por conseqüência, da formação superior para o exercício de 14 atividades profissionais. Além de jornalismo, na ocasião, terapia ocupacional, fonoaudiologia, fisioterapia, dentre inúmeras outras, integravam a lista de profissões a serem extintas no País. O argumento? Acabar com os “cartéis de corporações” profissionalizadas. Na época, aliado às reações dos diversos setores envolvidos, o projeto não foi adiante, até pelo posterior envolvimento do então presidente em ações de improbidade administrativa, que resultou no processo de impeachment e posterior renúncia do Fernando (o primeiro!). Ora, a contradição da história é que os defensores do fim da exigência da formação superior no jornalismo, sob o argumento do ‘fim dos cartéis’ e ‘contra o corporativismo’, são geralmente os mesmos – ou ao menos lançam mão dos argumentos – que defendem o uso do estado para fins privados, acham normal a liberação de bondosos empréstimos do dinheiro público a ‘cartéis’ da economia brasileira, como Proer e demais programas de salvamento para empresas de comunicação, sistema financeiro, telecomunicações e assim por diante. E isso não seria cartel, corporativismo etc, mas defender a profissionalização, sim! Desde a iniciativa no início da década de 1990 até outubro de 2001, os empresários da comunicação – que ainda estão sob fiscalização dos órgãos oficiais (delegacias do Ministério do Trabalho, sob acompanhamento e pressão sistemática das entidades sindicais da área) – não desistiram da defesa do fim da profissionalização em jornalismo. Motivo? Sem a exigência da profissionalização, os jornalistas ficam mais suscetíveis à imposição das relações de um mercado de trabalho, marcado pelas constantes tentativas de intervenção ‘apadrinhada’ de alguns colegas que se apresentavam como profissionais para reportar acontecimentos de interesses político-econômicos de tradicionais grupos detentores de poder na sociedade brasileira. Eventuais multas, pela admissão desses ‘profissionais’ ao exercício do jornalismo, aliadas ao contínuo achatamento salarial vigente na área, se tornaram motivo para aumentar o lobby de fortes grupos de mídia em defesa da desregulamentação profissional. Por coincidência, ou não, um dos pedidos da ação judicial assinada pela juíza federal de São Paulo incluía a extinção (anistia?) das multas do Ministério do Trabalho à empresas de comunicação pela manutenção de profissionais sem registro em seus quadros respectivos funcionais. A crise econômica brasileira, seguida da redução dos investimentos publicitários em mídia, também ‘coincidiu’ com a aprovação – pelo Congresso Nacional – de uma emenda constitucional, prevendo a entrada de capital estrangeiro na administração de empresas de comunicação do País. Fato inédito que, na vizinha Argentina, por exemplo, encontrou mais resistência em projeto similar apresentado ao parlamento local. Qual a relação existente entre esse contexto e a desregulamentação para o exercício do jornalismo com a defesa da qualificação profissional na área e a condição de cidadania? A máxima de que a gradual ‘desobrigação’ do estado do cumprimento de suas funções para com os contribuintes – apresentada como ‘transferência’ de serviços e a abertura do mercado – é o fator discursivo que sustentou o desmonte do estado de direito, seja no setor de transporte (via pedágios), privatização das telecomunicações, energia elétrica, bancos estaduais, dentre outras atividades historicamente entendidas como estratégicas pelo estado brasileiro, foi implantando um modelo de estado mínimo em que, contraditoriamente, o peso da carga tributária não implicou nenhuma melhoria da qualidade de vida aos usuários e contribuintes. Nesse processo, a redução dos investimentos públicos nas áreas de saúde, educação, transporte, previdência, saneamento básico, dentre outros setores, foi sendo implementado pelos sucessivos governos federal, estaduais e municipais como mais uma promessa de ‘sanear’ o estado. A desobrigação gradual com o cumprimento de atividades e serviços sociais foi, assim, enfraquecendo a qualidade de vida e a condição de cidadania teoricamente existentes no Brasil. O desmonte da sociedade civil com o esvaziamento de iniciativas populares e profissionais se tornou marca do estado ‘privatizado’ e importante argumento para justificar propostas de redução das condições mínimas de garantias sociais e direitos trabalhistas. É nessa perspectiva que se pode situar a medida cautelar assinada pela Justiça Federal de São Paulo em outubro de 2001: uma iniciativa que desconsidera qualquer preocupação com a qualidade da informação, a promessa de cidadania (tantas vezes adiada nesse País!) e o discurso de pluralidade, opção de consumo e identificação midiática. Deixar as regras do profissionalismo ao (des) controle de relações de mercado configura uma medida com relação direta ao desmonte da sociedade civil. Afinal, com organizações e movimentos sociais enfraquecidos se torna (ria) bem mais fácil reduzir a condição da cidadania ao rótulo de consumidores, isolados, e cada vez mais fragilizados em sua perspectiva de atores sociais, capazes de defender e lutar por melhores condições de vida… e, portanto, também por uma informação de qualidade, plural, democrática, não mais limitada ao interesse de alguns (mesmos) poucos e tradicionais grupos de poder. Ah, mas agora, com o governo Lula, a situação deve melhorar! Será? Melhor pensar que isso ainda não dá nenhuma garantia ao reconhecimento e respeito profissional. Em que pese a história de lutas que, décadas depois, resultou na escolha de um projeto popular para governar o Brasil, é preferível apostar que só a organização da sociedade civil pode fortalecer a profissionalização do jornalismo. É, aliás, também esta mesma iniciativa que pode dar mais sustentação política e democrática a um governo popular. * Jornalista, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR |