Jornalismo e a mercantilização do ensino superior

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* Valéria Said Tótaro

Tendo em vista os últimos acontecimentos na capital mineira referentes a demissões sumárias de docentes de Jornalismo da Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura) e do Centro Universitário Newton Paiva, às quais seriam motivadas por interesses mais escusos que acadêmicos, gostaria de relacionar o processo de mercantilização do ensino superior privado de Jornalismo com o desconhecimento da trajetória histórica profissional, bem como sua imediata conseqüência para nós, cidadãos.

A origem filosófica e paradigmática do Jornalismo surge no século XIX, quando tem início nossa trajetória, numa democracia. Nesse contexto filosófico, partilhamos uma herança com os ideais do Iluminismo (que inclui nomes como John Milton, Rousseau, Montesquieu e Voltaire), que vão influenciar nossos valores profissionais (ethos jornalístico) como: a) a busca da verdade (não a metafísica, mas aquela por meio da exposição das opiniões divergentes, mais conhecida como o Princípio do Contraditório), b) a independência (mais autoral que financeira), c) a objetividade (longe de ser falta de contextualização dos fatos e sinônimo de acurácia, isto é, a exatidão garantida pelo rigor dos procedimentos de apuração e verificação das informações obtidas e narradas de forma a emocionar o cidadão, sem inventar emoções) e d) a noção de serviço público, que define uma relação historicamente adversarial entre o Jornalismo e establishment político, e uma dupla função social para os jornalistas, segundo a Teoria Democrática, a saber: 1) serem porta-vozes dos cidadãos em questões socialmente relevantes e, 2) vigilantes do poder político, denunciando os abusos que o poder vigente pode cometer contra os cidadãos, numa democracia.

Eis aí a dimensão intelectual (ideológica) da nossa profissão, que a mercantilização do ensino superior descarta em razão de uma inexplicável antinomia no campo jornalístico contemporâneo: a separação entre o pólo ideológico (a definição do Jornalismo como um serviço público) e o pólo econômico (definição de Jornalismo como um negócio). Destarte, a dimensão econômica do Jornalismo é o pólo mais exaltado pelos empresários da área, o mais enfatizado pela esmagadora maioria das Escolas de Jornalismo e o menos compreendido por todos os envolvidos na mediação diária da informação de relevância pública: estou me referindo à condição de lucro, isto é, ao processo de comercialização que surge no século XIX e que dá constituição ao novo paradigma do jornalismo, presente até os dias atuais em qualquer redação.

E essa falsa contradição entre os dois pólos do ethos jornalístico é resultado de um verdadeiro desconhecimento da própria trajetória histórica da nossa profissão. Aliás, nesse trecho, é pertinente citarmos uma frase do filósofo e político romano Cícero, que escreveu há mais de dois mil anos, o seguinte: “desconhecer a história é permanecer criança para sempre”. No que me permito fazer a seguinte contextualização: desconhecer a trajetória histórica do Jornalismo é permanecer inapto e inepto diante da profissão que escolhemos.

Com efeito, somente aqueles que se dignaram a conhecer nossa história têm capacidade para entender que essa condição de lucro é conseqüência, e não causa, de credibilidade e independência de um jornalismo de qualidade. Em outras palavras, que Jornalismo gera credibilidade porque cumpre sua função social e, conseqüentemente, produz lucro. Donde se conclui que os dois pólos do campo jornalístico se complementam e não se excluem. Mas, infelizmente, para uma massa ignara da Comunicação Social (que inclui quase todos os empresários da área, a maioria dos coordenadores de Cursos de Jornalismo, muitos professores e um elevado número de profissionais de plantão), o discurso do mercado, porcamente mal elaborado, é o que predomina: de que empresa jornalística para dar lucro tem que ser tratada como empresa e não como Jornalismo.

E essa lógica mercantilista acaba refletindo no ambiente acadêmico, que faz ressonância do mercado, por meio de seus projetos pedagógicos e da implantação da razão cínica nas coordenações para melhor adestrar seus professores: tratamentos meramente comerciais, moralmente indefensáveis e politicamente corruptos. Benefícios para muitos dos docentes que jamais, em tempo algum, estão à venda? Demissões sumárias, claro. Troca-se o pecado capital da preguiça (intelectual) pelo pecado do capital (mercantilização da ética). E a lógica cínica dessa razão reservada a seus discentes? A depender do caso, são tratados ora como clientes nada exigentes, ora como futuros profissionais desrespeitados como cidadãos.

Reflexos para a sociedade? Bem, na era da informação e do conhecimento (e marcadamente da mercantilização do ensino superior), em Escolas de Jornalismo onde há escassa ética por parte de coordenações com seus docentes; onde proliferam alunos(as)-mercadorias que estão sempre à venda e onde grassa em seu ambiente o desconhecimento histórico da nossa profissão, não é difícil concluir que nós, cidadãos, teremos grandes dificuldades para nos informar sobre quem está decidindo, em algum lugar do planeta, se vamos viver ou morrer. Isso, se não morrermos antes, por falta de conhecimento e excesso de negligência por parte daqueles que têm a responsabilidade de nos oferecer profissionais eticamente comprometidos com o interesse público, isto é, jornalistas por vocação e por formação.

* Jornalista e professora de Ética e Deontologia do Jornalismo, Teorias do Jornalismo, Teorias da Comunicação, Filosofia do Jornalismo, Jornalismo Opinativo e Interpretativo, Estudos de Recepção e Audiência. Membro do Fórum Mineiro dos Professores de Jornalismo.

Artigo originalmente publicado no site do SJPMG e no Comunique-se