* Sylvia Debossan Moretzsohn Depois de uma avalanche de editoriais e artigos diversionistas, como é regra na nossa imprensa desde a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, os três principais jornais do país trouxeram elementos para a contestação da versão prevalecente a respeito do julgamento de torturadores durante a ditadura. O tema voltou à discussão com a apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, na quarta-feira (10/12). Já na quinta-feira (11), ao noticiar a solenidade da entrega do documento, O Estado de S.Paulo abria pequeno espaço para esse debate, opondo os juristas Fábio Konder Comparato e Ives Gandra Martins, e publicava artigo que tratava da possibilidade de nova apreciação da lei pelo Supremo Tribunal Federal. No mesmo dia, a Folha de S.Paulo também discutiu essa hipótese. No Globo, a colunista de economia Míriam Leitão, ex-presa política cuja história foi relatada neste Observatório(ver “ A repórter pergunta, o ministro gagueja “), interrompeu suas férias para escrever um artigo ( ver aqui) à contracorrente do discurso do jornal. No domingo (14/12), o Estado publicou entrevista de página inteira no caderno “Aliás” com o historiador José Luiz del Roio, ex-membro do PCB e da ALN ( ver aqui ). A Folha, embora tenha dedicado em seu espaço noticioso duas páginas a casos de mortos em consequência de ações da esquerda armada – ou da repressão a ela –, trouxe também no domingo a coluna de Antonio Prata ( ver aqui ) e sua vigorosa defesa da punição dos torturadores. No dia seguinte, foi a vez de Ricardo Melo ( aqui ) abordar o tema, com a mesma veemência. Também na segunda-feira (15/12), em mais uma investida – a terceira, em duas semanas – pela manutenção do silêncio em torno do alcance da lei, O Globo afinal abriu espaço para o contraponto, no artigo do jornalista e ex-preso político Cid Benjamin ( aqui ). Revanchismo? Não significa, mesmo: revanchismo seria propor que os torturadores passassem pelo mesmo tratamento dispensado às suas vítimas. Pedir que sejam julgados, pedir que se faça justiça, é algo bem diferente. Cid Benjamin contesta os editoriais do Globo ao lembrar que a proposta de anistia aprovada em 1979 não foi fruto de consenso, como se pretende fazer crer, e defende o julgamento dos torturadores como parte de um processo de adequação da formação dos militares aos tempos da democracia. É curioso, aliás, que o jornal insista na tese do revanchismo e afirme que a Lei da Anistia resultou “de um projeto que apostou na conciliação, e não no confronto”, quando o confronto foi promovido pelas forças que destituíram um presidente eleito e não demorariam para implantar um regime de terror no país. Como se a negociação para a aprovação da lei tivesse ocorrido entre partes em pé de igualdade. A propósito, o artigo de Ricardo Melo na Folha não deixa dúvidas: A necessidade do julgamento Procurei discutir essa questão em matéria publicada em 12/4/1987 no caderno B Especial do Jornal do Brasil, por meio de entrevistas com quatro advogados de renome. Três deles foram categóricos em rejeitar a versão oficial: argumentavam que a conexão se estabelece entre ações solidárias – por exemplo, quadrilha e roubo, furto e receptação –, não entre uma ação e a repressão a ela. Porém, mesmo quem acolheu a interpretação prevalecente da lei concordou em que, para ser beneficiado pela anistia, o acusado precisaria passar por julgamento: “Anistiar alguém por antecipação é uma heresia jurídica”, afirmou, então, o advogado Laércio Pellegrino, já falecido. “É condição sine qua o anistiado estar respondendo a processo ou já ter sido condenado, pois a lei se aplica a processos em curso ou findos.” Mais de um quarto de século depois, é notável que nossos principais jornais ignorem esses argumentos e se aferrem à interpretação conveniente aos responsáveis pela instauração da ditadura e aos saudosos desses velhos tempos, que, longe de serem ingênuos, ignorantes ou desinformados, sabem muito bem o que estão fazendo quando saem às ruas com cartazes pedindo um golpe militar. Uma entrevista esclarecedora (Note-se, aliás, que não se trata apenas dos que pegaram em armas, embora a história da resistência à ditadura esteja sendo associada exclusivamente à luta armada, como se a repressão não tivesse desabado de maneira igualmente brutal sobre aqueles que defendiam o caminho da resistência política. O martírio de Vladimir Herzog é talvez o exemplo mais eloquente entre esses casos.) A falácia do equilíbrio No entanto, os principais jornais do país insistem na tese do “equilíbrio”, que seria inclusive um valor fundamental para a própria prática jornalística: a velha história de “ouvir os dois lados”, como garantia de uma suposta imparcialidade. Do ponto de vista teórico, esse princípio é facilmente contestável, e aqui me valho dos argumentos da professora Judith Lichtenberg em artigo publicado no livro Mass Media and Society, organizado por James Curran e Michael Gurevitch. Diz ela que “equilíbrio” é algo comumente entendido como resultado de interpretações normalmente aceitas, e é abalado diante de versões controversas: tudo depende dos consensos existentes em cada cultura e em cada época. Além disso, a exposição de diferentes interpretações sobre um mesmo fato supostamente deixaria o público em condições de tirar suas próprias conclusões. Porém, se o jornalismo realmente equilibrasse os enfoques, não haveria meio racional para qualquer julgamento. Logo, a conclusão seria de que há verdade em todos os lados, ou em nenhum: pois, se tudo é equivalente, um ponto de vista é tão bom quanto qualquer outro. É claro que não se trata de sugerir que os jornais deixem de apresentar diferentes versões sobre um fato – aliás, as considerações sobre o equilíbrio estão associadas a uma densa discussão sobre a objetividade no jornalismo, que não é possível abordar aqui –, mas sim de demonstrar que não é possível esconder-se atrás de uma alegada neutralidade: todo jornal tem responsabilidade sobre o que publica e precisa se posicionar diante dos fatos que relata. Revelar a realidade Ao criticar o anúncio publicado pelos clubes militares em resposta ao documento da Comissão da Verdade, com a relação – aliás, precária, por incorrer em erros – dos mortos “do outro lado” ( ver aqui ), o jornalista Mário Magalhães foi ao mesmo tempo claro e contundente: Em nome do futuro Por isso a tortura tornou-se um crime imprescritível. Nossa imprensa deveria estar à altura desse postulado, se de fato pretende defender os mais preciosos valores humanos e a ordem democrática. “As concessões diante de um passado abominável têm alto preço no presente e no futuro. O deputado Bolsonaro está aí para provar”, escreveu Ricardo Melo. “Bolsonaro idolatra o estupro, ofende colegas e faz pouco dos direitos humanos sempre que pode. Um bandido. Seus herdeiros seguem pelo mesmo caminho, clamando pela intervenção militar. Num belo dia, a história pede licença para se repetir.” Da mesma forma, Cid Benjamin argumenta: “Para que uma página da História seja virada, ela deve ser lida. Só assim se criam anticorpos para que tempos sombrios não voltem”. * Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense e integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro Publicado no Observatório da Imprensa em 16/12/2014 |