Nossos “ghetos”: o jornalismo

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* Aylê-Salassié

Vejo, de imediato, que o jornalismo tem, como a maioria das áreas do conhecimento, competências específicas. Para aprendê-las passa-se quatro anos na Universidade; para exercê-las, com sabedoria, precisa-se de, pelo menos, mais quatro em atividade. A universalidade requerida para o seu exercício mantém, contudo, em aberto, um espaço exógeno, onde se cruzam diversas áreas e campos do conhecimento, induzindo o entendimento de que qualquer profissional, com qualquer tipo de formação, pode exercê-la. Esse quadro tende a se agravar, ao situá-lo dentro do campo da Comunicação. A vulnerabilidade da profissão multiplica-se indefinidamente. 

Poucos se dispõem a entender que o relacionamento do jornalismo com outras áreas constitui-se apenas numa interface, recurso de complementariedade, que sempre se buscou de maneira diligente e zelosa: devemos estudar Filosofia? História? Sociologia? Economia? Política? Estatística? Enfim, esse enorme fardo de erudição, do qual todos fogem, agregado a inexperiência de vida termina por remeter à superficialidade a formação atual do jornalista. Assim, a profissão está sempre submetida ao risco da descaracterização, quando reposicionada no campo da comunicação pelas análises epistemológicas. Ignora-se que se trata de uma área de trabalho configurada e consolidada historicamente, cuja essência reflete a figura construída por Marx, quando fala da relação do homem com seu instrumento de trabalho. Segundo ele, “é o martelo que se adapta à mão do trabalhador”, e não o contrário, ou seja, a ferramenta reconhece o sujeito. Observa-se, contudo, que a profissão vem sendo tratada, de fato, ao contrário por essas centenas de cursos de Comunicação e, quiçá, de Jornalismo. Mercantilizados, roubam gradualmente dos vocacionados, na deficiência e nos desvios pedagógicos conceituais, parcela da essência da mais valia do trabalho.

Não podemos ser vistos como um banco de empregos para profissionais ou profissões que ainda não se encontraram no seu próprio campo de estudos e que confundem o papel complementar do conhecimento, mesmo que aceito como multidisciplinar, com a convergência profissional de uma experiência histórica globalizante. Os elementos de análise são outros, e os analistas devem ser os próprios sujeitos. Não se desconhece que a profissão de jornalista está, de fato, passando por uma grande transformação na sua concepção, nas suas práticas e nas suas ferramentas. São mudanças paradigmáticas que exigem qualificações muito mais sofisticadas e polivalentes. A mídia está a postos acompanhando essa quase ruptura – observe-se “quase”, porque há ainda muitos obstáculos a serem superados – que ocorre na área, e que, supostamente, abre espaços para outros se aproximarem dela ou para que busquemos naturalmente aportes em outros campos do conhecimento. Falta ainda muita clareza.

Walter Isaacson – espero não estar enganado – ex-editor da revista Time, chamou de “{…}erro histórico envolver o Jornalismo no campo da Comunicação ¨{…}, porque a atividade apresenta características bastante pontuais, amarradas em técnicas, tecnologias, motivações e capacidade de compreensão e análise do comportamento humano em sociedade, que convergem para o seu perfil universalista, configurando-o na sua especificidade profissional. Essa suposta verdade induz à pergunta se devíamos separar então o Jornalismo da Comunicação? Ora, a Comunicação tem uma amplitude, que sobrepassa o jornalismo e que, por isso mesmo, quase o defenestra ou o corrompe. O que parece faltar é uma definição mais clara do campo da Comunicação . Não existe este problema na área do jornalismo. As confusões sobre a profissão vem de aportes externos e alienígenas, que dentro de um curso de Comunicação pesam sobre a formação do jornalista. É preciso resolver essa pendência, que caminha em direção a uma pendenga, que reduz o jornalismo a um simples pilar, quando ele se posiciona social e metaforicamente como um suposto “Quarto” ou “Quinto” Poder ou, sobretudo, como instrumento de educação informal.

Não sou corporativista, mas se todos praticam o corporativismo, e o pior, o fisiologismo profissional, então porque vamos nos abrir inconsequentemente para o mundo. Nenhuma profissão deixa livre o seu caminho para os jornalistas. Não temos o privilégio dos advogados de, ao redigir a lei, estender para si as competências de outras áreas. As mudanças nas leis do jornalismo que, em realidade, estão mal dimensionadas, são reivindicações de pessoas fora do jornalismo – porque o jornalista sabe exatamente a dimensão e as fronteiras do seu trabalho – ou de interesses corporativos estranhos, particulares e empresariais que não coincidem com o compromisso público da profissão. O exercício do jornalismo não se faz com diploma ou leis espúrias. 

Nós, professores, não devemos encerrar também a nossa preocupação com os alunos, a partir do momento em que eles recebem o seu diploma. Acompanhamos, algumas vezes de perto outras de mais longe, a sua trajetória, e deveríamos estar todo o tempo à disposição para ajudá-los dentro das nossas competências específicas e apoiá-los a se instalar profissionalmente para que eles, inspirados na filosofia da Comunicação – se é que existe – não desvirtuem a sua própria formação, e os cursos visualizem o cumprimento do seu compromisso social e público. Portanto, temos também uma responsabilidade inesgotável, com aqueles que, como dizia Saint Exupèry,“Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas”, ou diria ainda, por aqueles que nos cativam também. Nossos estudantes de jornalismo e colegas profissionais demandam por seu espaço, por um posicionamento enquanto sujeitos, no mercado, ou na sociedade. Cabe a nós orientá-los e protegê-los de maneira solidária. 

Não podemos esquecer ainda que liberdade de expressão é um direito humano e que, enquanto prática social organicamente dimensionada, cumpre, sobretudo, um papel pedagógico. Ignorar isso seria repetir a omissão dos sacerdotes em Jerusalém diante do comércio que se instalou na entrada do templo. Não sou contrário às estratégias de fortalecimento e coesão social. Mas o jornalismo, enquanto expressão pedagógica em si, precisa ter uma formação mais compatível com a sua própria e estrita – que é grande – responsabilidade dentro da divisão social do trabalho, participando intensamente da vida comunitária. Só assim sobreviverá. Temos de nos preparar, entretanto, para o fim do corporativismo, mas devemos fazê-lo, se de fato todos seguirem pelo mesmo caminho. As demandas sociais, as tecnologias disponíveis, indicarão as competências intrínsecas ou para uma nova inserção social, ainda não amadurecida. Dos reformadores exige-se, por isso, bom senso. É delicado e perigoso ver a sociedade a partir dos “ghetos” que habitamos, às vezes fechados em nós mesmos. Espero que o nosso seja apenas um espaço físico dimensionado abstratamente, e não nos envolva cognitiva e etnocentricamente.

Devemos ser ainda realistas ante as ameaças ao jornalismo convencional a partir das bases da sociedade do conhecimento. O jornalismo se apropriou privadamente do “fato” (que ele chama ou não de “jornalístico”, segundo visões individualizadas muitas vezes também estereotipadas), transformando-o numa agenda social (Agenda setting), que contempla a conservação das estruturas dadas. Longe dessa possibilidade de fazer história, os cidadãos vão, entretanto, se apropriando aos poucos da vida social, por meio das novas tecnologias, e começam a tomar a iniciativa de registrar, de forma ampliada, multimídia (smartfone), o “fato” que protagonizam. Não podemos ter eternamente o monopólio da realidade, e não somos os únicos a produzir sentidos. Para produzi-los profissionalmente, necessitamos competência, que não se manifesta apenas no escrever, no falar ou no ornamentar – às vezes de expressão muito particular – a mensagem. Precisa-se de criatividade, competência, conhecimento e consciência clara para não repetir os erros do passado ou saber usar a plataforma da História, da Arte ou da Tecnologia para construir o futuro. 

Temos, ainda, de nos mostrar cuidadosos diante das rupturas paradigmáticas, porque, somos humanos e o papel que nos cabe na produção social de sentidos é preservar a humanidade do homem, cujo individualismo e o narcisismo pós-modernizante podem tornar a convivência difícil, fazendo–nos retornar as “hordas” originais ou ao mundo hobbesiano do homem como “lobo do próprio homem”. Os paradigmas estimulam soluções novas, mas também podem funcionar como armadilhas. Seu mérito é nos empurrar para o desconhecido. Não precisamos de garantias para promover mudanças, mas também não podemos esquecer que temos uma missão a cumprir; somos parte do interesse público, que nem sempre reflete o dominante. 

Se observarmos com atenção, no site da Federação dos Jornalistas (FENAJ) existem muitas propostas de alterações e ajustes na profissão, conduzidas por projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional: alguns encerram-nos dentro do campo da comunicação, outras nos redefinem dentro do nosso próprio espaço, e a mais polêmica, no momento, é a que estende a possibilidade do exercício das atividades jornalísticas a outras áreas profissionais. Devíamos ter um canal de acompanhamento dessas mudanças, para não deixar a responsabilidade apenas para as organizações sindicais, que passaram a pensar a profissão ideologicamente. Cabe a nós participar dessas discussões externas, juntos ou não com as representações corporativas, para que possamos, internamente, também nos posicionar como sujeitos nas mudanças previstas, e não apenas embarcarmos nas visões individuais ou correntes politizadas de significação, conduzidas por um ou outro eventual. Reflitamos parafrasticamente: se pensamos, e produzimos responsavelmente sentidos, logo existimos como jornalistas ou como educadores. 

Last, but not least
O diploma formal apenas nos institucionaliza dentro da divisão social do trabalho, não significando obrigatoriamente, pelas características que envolvem hoje nossos cursos de graduação, que estamos, portanto, totalmente prontos para assumir qualquer responsabilidade em nossa área de formação. Várias profissões exigem formações complementares. 

Entretanto, faz diferença sermos ou não vocacionados ou identificados com as propostas do jornalismo (ou da publicidade). De uma perspectiva segura como essa, não há porque temer a ingerência de “leigos” na área. Receosos devemos ficar, sim, com as interpretações falaciosas sobre a profissão no enorme campo onde se localizam aqueles que desconhecem as competências necessárias do jornalista para que essas pessoas possam ter acesso aos chamados produtos da mídia, e assim formar opinião sobre a vida social.

Pior ainda é quando essas mesmas pessoas tentam julgar a competência e o papel dos jornalistas. Não é tão óbvio, como pensam os ministros dos tribunais superiores, ter em mãos diariamente os produtos de mídia. Importante ou não acessá-los – é problema de cada um -, a mídia proporciona, contudo, aos intérpretes da lei aquela postura cobrada do presidente do STF, Gilmar Mendes, pelo ministro Joaquim Barbosa: É preciso sair às ruas, sr. Presidente. Ora, os jornais trazem as ruas para dentro das instituições. O problema é que, cientes e vaidosos da sua autonomia, dentro das instituições ninguém lê jornal. Lê, no máximo, clippings (resumos especializados), somente o que interessa: o resto tem cheiro de povo, ou como dizia o ex-presidente Figueredo, … cheiro de cavalo. Na relação do Judiciário, especificamente, como o povo, perde o sentido a paráfrase de que “…se os ministros não vão ao povo, o povo vai aos ministros”. Por isso, para os ministros do Judiciário, cercados de liturgia, salários e mordomias que cegam e os distanciam muito do cidadão médio, recomendaria: Srs. Ministros, é preciso ler os jornais.

Mas, também, é preciso lembrar que, ao banalizar a profissão de jornalista, cuja função, exercida com responsabilidade e competência técnica específica, tem sido a de aproximar a população do Estado e manter coesos os laços sociais, v. excias demonstram uma elevada insensibilidade com o processo e a divisão social do trabalho, que se resolvem por si, e não com a interferências de v. excias, que, sem contato com o povo nas ruas pouco ou nada têm para ensinar não apenas para a sociedade em transformação, mas sobretudo para os jornalistas que a ajudam a se transformar. Para a Ordem dos Advogados, o Supremo errou ao suspender a obrigatoriedade do diploma de jornalismo. Errando ou não, está dito. Cabe a nós reescrever a profissão pelo não dito, que, na realidade, só nós profissionais do ramo conhecemos.

* Professor de Jornalismo Político e Econômico do curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília