* Sylvia Debossan Moretzsohn A notícia de que o Senado, no início de agosto, havia contrariado decisão do Supremo Tribunal Federal e ressuscitado a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício profissional levou a uma nova série de artigos, alguns publicados neste Observatório, que retomam o debate sobre a validade de tal exigência. Trata-se de debate antigo, que no Brasil ganhou força nos anos 1980, na esteira do decreto-lei de 1979 que regulamentava a profissão. Na época – ainda muito marcada pela polarização ideológica que a vida sob ditadura ajudava a alimentar –, a defesa do diploma tinha um certo sentido de contestação ao papel desempenhado pelas empresas de comunicação: formado adequadamente num curso universitário, o jovem candidato a repórter aprenderia a olhar o mundo de maneira crítica e teria a qualificação necessária para confrontar a orientação prevalecente nas grandes redações. Daí, logicamente, a pressão das empresas contra esse tipo de formação. Não é preciso dizer o quanto havia de idealismo nessa perspectiva, que entretanto reforçava a aura libertária e a própria mitologia historicamente associada à figura do jornalista, cristalizada no conceito de “quarto poder”, forjado no período imediatamente posterior às revoluções que derrubaram o Absolutismo. A diferença de contexto deveria ser levada em conta: no mundo anterior à revolução industrial, o jornalista era um defensor e propagador de causas – por isso Thomas Jefferson podia dizer que preferia um país sem governo a um país sem jornais; hoje, é um profissional que, trabalhando em grandes corporações, cumpre rotinas muito estritas para a produção do noticiário. Ainda assim, e ainda que idealizado, o conceito permanece até hoje e legitima os que exercem essa atividade como “fiscais do poder” e “representantes da sociedade”, incumbidos da missão de estar onde os demais cidadãos não podem estar para de lá extraírem e divulgarem as informações socialmente relevantes. Argumentos falaciosos Em fins de 2011, escrevi um pequeno artigo (“Em defesa do diploma de jornalista“) no qual procurava desfazer alguns desses equívocos fundamentais, como a confusão entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa, e tentava demonstrar, como tantos fizeram antes, que o jornalismo é uma profissão, e uma profissão de tal relevância que exige qualificação superior. Negar tal exigência é reduzir o jornalismo a um breve conjunto de técnicas já consolidadas que devem simplesmente ser incorporadas por quem desejar desempenhar essa função. Bastaria um rápido adestramento e qualquer pessoa razoavelmente inteligente e esperta, que tenha “algum talento para a escrita” e “razoável cultura geral”, pode virar jornalista – ainda que, como ressalta Mino Carta, o compromisso moral seja indispensável ao correto cumprimento da tarefa. O desprezo pela teoria Ainda que se aceite a rejeição à perspectiva excessivamente teórica dos cursos de Comunicação de trinta anos atrás, inclusive pela carência de professores com um mínimo de experiência profissional, é improvável que um sujeito com tamanha bagagem cultural duvidasse da relevância de pensadores que ajudam a entender e questionar o mundo com o qual teremos de lidar. A não ser que a compreensão fosse – mas não era – a de que o jornalista precisava apenas de um bom adestramento. A defesa da escola Cláudio Abramo não considerava o jornalismo uma profissão, mas uma “ocupação”, uma “carreira”. Perseu Abramo, seu sobrinho, apenas seis anos mais novo, pensava exatamente o contrário. Em 1987, escreveu um pequeno artigo na Folha de S.Paulo (“Jornalismo: profissão específica ou atividade geral?“) fundamentando a necessidade de formação específica para o jornalista: “Não é uma atividade geral, que qualquer um possa fazer. É um processo específico e complexo e que, por isso, exige formação especializada. A tendência histórica provável é que essa especialização aumente: cresce a complexidade tanto do mundo social e físico, que constitui o conteúdo das informações, quanto dos métodos de obtenção, registro e difusão das informações. Por isso modernamente o jornalismo necessita de formação especializada de nível superior; por isso é que surgiram, no interior dos sistemas escolares universitários, os cursos de jornalismo e seus diplomas.” Ao mesmo tempo, Perseu desmontava o argumento da “reserva de mercado” identificado à necessidade do diploma específico, mostrando que o raciocínio estava invertido: “Não se trata de um ‘direito’ dos formandos. Trata-se do direito de a sociedade exigir do profissional a prova da sua formação regular, escolar e superior específica”. Em seguida, discordava dos que sugeriam a hipótese de uma formação em outra área, ou mesmo uma especialização a partir de uma formação geral: “Supor que outra formação não específica seja igual à de jornalismo significa negar o jornalismo como profissão específica e entendê-lo como atividade geral. Efetivamente, todos quantos concebam o jornalismo como atividade geral são coerentes ao negar a necessidade do diploma de jornalismo. Mas, para continuar coerentes, terão de assumir a premissa de seu corolário: se o jornalismo é uma atividade geral, não pode exigir como requisito prova nenhuma de qualquer formação prévia.” A exigência de qualificação Não é algo que se aprenda em meia hora, dois ou três dias, ou mesmo dois meses. E não se trata, como jamais se tratou, simplesmente de adestramento técnico: trata-se de aliar essa qualificação à formação humanista que sempre se defendeu, para que o profissional habilitado ao manejo da técnica mais avançada saiba o que fazer com ela. Mas é claro que tudo isso diz respeito ao jornalismo voltado para o esclarecimento do público, dedicado a duvidar das versões oficiais e empenhado em questionar as interpretações de senso comum sobre os fatos da vida cotidiana. Para o festival de superficialidades e bizarrices que circula como notícia, especialmente na internet, e para recortar e colar automaticamente releases de assessorias, meia hora de treinamento já seria uma eternidade. * Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007) Publicado no Observatório da Imprensa em 21/08/2012
|