Se não houver mudanças, TV digital só favorecerá interesses dos empresários

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foto_mariajose_schroderO debate sobre a implantação da TV digital no Brasil está se intensificando. Principalmente porque o prazo oficial para a definição de um modelo nacional está previsto para 10 de fevereiro. As divergências entre representantes da sociedade civil, empresários e governo, no entanto, estão longe de serem superadas e as ações do Ministério das Comunicações assumem, cada vez mais, um lado: o dos donos das principais redes comerciais de TV no Brasil. Mas os representantes dos jornalistas e de outros segmentos da sociedade não se dão por vencidos e vão à luta.

Nesta coletiva virtual, a goiana Maria José Braga, tesoureira da FENAJ e representante da entidade no Conselho Consultivo do SBTVD, e o gaúcho Celso Schröder, secretário geral da Federação e coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), abordam a TV digital, seus dilemas e possibilidades enquanto instrumento estratégico de desenvolvimento nacional.

E-FENAJ – Na reunião do Comitê Consultivo do SBTVD, realizada em novembro, o descontentamento das entidades da sociedade civil com comportamento do Ministério das Comunicações sobre esta questão ficou evidente, inclusive com alguns representantes de entidades propondo a retirada deste processo. Diz-se, inclusive, que há uma ação deliberada do Ministério no sentido de esvaziar tal órgão. Quais as principais razões deste descontentamento?

Maria José Braga – As principais queixas de entidades como a FENAJ, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), A Associação Brasileira de Televisões Universitárias (ABTU) e outras dizem respeito à condução das discussões sobre a implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). O Ministério das Comunicações (MinCom), principalmente na gestão do ministro Hélio Costa, tem atuado de forma parcial e tendenciosa na condução desse importante processo. Houve um esvaziamento do Comitê Consultivo (CC SBTVD) — órgão oficial instituído pelo próprio governo para ser a instância máxima de opinião/orientação para a implantação do SBTVD — em favor de uma interlocução privilegiada com o empresariado, principalmente o do setor de radiodifusão. O ministro Hélio Costa criou um verdadeiro comitê ad hoc no qual as discussões centrais estão sendo realizadas. Essa posição do ministro contraria frontalmente o que está estabelecido no decreto 4.901, que cria o SBTVD.

Celso Schröder – O ministro tem agido claramente na defesa dos interesses da Rede Globo ao apontar a escolha do padrão tecnológico japonês como a melhor alternativa para a digitalização brasileira. Não podemos esquecer que a Globo vem, desde o governo FHC, defendendo a alta definição (de imagem) como sinônimo de digitalização.

Mas há ainda um outro aspecto, importantíssimo, aliás, que nos deixa bastante descontentes. A digitalização (não apenas da TV aberta, mas das redes de comunicação) é uma importante etapa no desenvolvimento de uma nação e, infelizmente, a política desenhada pelo governo para a digitalização está se mostrando insuficiente e subordinada aos interesses privados do setor de radiodifusão. Perde-se, assim, a chance histórica que a mudança da plataforma tecnológica permitiria ao Brasil: dar um salto tecnológico e colocar-se em igualdade de condições com os países desenvolvidos em questões estratégicas, como a produção de semicondutores.

E-FENAJ – Apesar dos descontentamentos, o FNDC e a FENAJ, no início de dezembro, fizeram uma peregrinação junto ao governo federal para apresentar as propostas aprovadas na XII Plenária do FNDC. Falaram com o Vice-presidente da República, José Alencar, com a Casa Civil e Secretaria Geral da Presidência da República, pedindo que a implementação da TV Digital no Brasil seja coordenada por um grupo interministerial e que a sociedade seja ouvida. Como foi a receptividade da proposta? Há realmente perspectiva da sociedade interferir neste debate, uma vez que o ministro Hélio Costa já anunciou seu modelo de referência preferido antes do prazo, que é fevereiro de 2006?

Celso Schröder – A FENAJ e o FNDC estão cumprindo seu papel. Estamos discutindo profundamente a digitalização, apontando problemas e fazendo proposições. O resultado da XII Plenária do FNDC, realizada em Belo Horizonte, em outubro, é uma demonstração desse nosso esforço coletivo. Acreditamos que temos a obrigação de provocar o debate na sociedade e também dentro do governo que, todos sabemos, não é homogêneo. O vice-presidente nos ouviu atentamente, assim como os interlocutores que procuramos na Casa Civil e na Secretaria Geral da Presidência. Tanto o vice José Alencar, quanto o assessor da ministra Dilma e o ministro Luiz Dulci mostraram-se preocupados com a complexidade do tema e comprometeram-se em procurar interferir no processo de debate e de definição do SBTVD.

Maria José Braga – Nossas posições e nossas ações têm, de alguma forma, produzido resultados. Alertamos a sociedade sobre as perspectivas abertas pela digitalização para a indústria nacional. Isso provocou uma mudança no discurso do ministro Hélio Costa. Ele chegou a anunciar publicamente que a política do governo (ou a falta dela) seria eliminar os impostos para importação de equipamentos. Depois das denúncias dos prejuízos que o país teria, ao não traçar uma política industrial conjugada à digitalização, ele mudou o discurso e anunciou que a indústria nacional terá até mesmo linhas de crédito especiais.

E-FENAJ – Enquanto as entidades batiam às portas destes órgãos, os empresários das principais redes comerciais de TV do Brasil reuniam-se diretamente com o ministro das Comunicações e com o presidente Lula, apresentando sua posição sobre o SBTVD e reivindicando recursos públicos para seu financiamento, via BNDES. Isto não evidencia que está havendo “dois pesos e duas medidas” no relacionamento do governo federal com seus interlocutores?

Maria José Braga – Está havendo dois pesos e duas medidas por parte do Ministério das Comunicações. Já dissemos que o ministro Hélio Costa elegeu como interlocutores privilegiados os empresários do setor de radiodifusão. Na verdade, ele criou um comitê ad hoc ao esvaziar o CC SBTVD e estabelecer uma interlocução direta com os empresários da radiodifusão e, por último, mas em menor grau, com os empresários da indústria de produtos elétricos e eletrônicos.

Celso Schröder – Historicamente, o MinCom tem sido usado pelos governos como um verdadeiro balcão de negócios. No governo Lula, infelizmente, isso não foi diferente. Foram designados ministros de partidos aliados, mas fora do eixo de decisões governamentais. Isso fez com que o MinCom não fosse o local da formulação e implementação das políticas públicas de comunicação, aí incluída a digitalização. Desde o início, o governo Lula sinalizava que estava fazendo a opção de não estabelecer uma política estratégica de comunicação como moeda de barganha com o status quo da comunicação.

No processo de discussão da TV digital, ainda em curso, é claro, o presidente Lula recebeu os empresários do setor de radiodifusão e recusou o pedido de audiência feito pela FENAJ e pelo FNDC. Mas continuamos com a expectativa de que esse quadro seja revertido e de que a sociedade tenha voz nesse processo. É para isso que estamos mobilizados.

E-FENAJ – Lauro Carneiro, de Fortaleza, conta que a polêmica é tão grande quanto ao SBTVD que mesmo os empresários não estão falando a mesma língua, havendo divergências inclusive entre fabricantes de equipamentos e empresários de comunicação. Ele pergunta o que “está pegando” efetivamente? Quais as divergências centrais entre empresários, governo e entidades da sociedade civil?

Celso Schröder – O governo brasileiro apontou corretamente, no decreto que cria o SBTVD, os objetivos que devem ser buscados com a TV digital. Entre eles, destacam-se a convergência tecnológica (serviços de radiodifusão, de telecomunicações e de internet funcionando de forma integrada) e a inclusão digital. Infelizmente, o governo parece estar cedendo ao lobby dos empresários da radiodifusão e, com isso, esquecendo o que havia estabelecido como meta. Nesse sentido, estão praticamente desaparecendo as divergências entre governo e empresários (da radiodifusão) e aumentando as divergências entre ambos e os representantes da sociedade civil que participam do Comitê Consultivo do SBTVD. Os representantes da sociedade civil insistem que a digitalização deve levar em conta a convergência tecnológica, a inclusão digital e outras potencialidades democratizantes que a tecnologia abre.

Maria José Braga – Temos a impressão de que os empresários dos diversos setores (radiodifusão, telecomunicações, TV paga, indústria etc) estão mais preocupados com seus interesses coorporativos do que com o desenvolvimento de um SBTVD. E o governo está cedendo a esses interesses. Ficamos nós da sociedade civil, sem interesses diretos na digitalização, defendendo um projeto nacional que utilize a digitalização para alavancar a indústria, desenvolver tecnologia e inteligência, democratizar o acesso aos meios de comunicação (a digitalização pode permitir a entrada de novos agentes produtores e distribuidores de conteúdo para a TV) e valorizar a cultura nacional.

E-FENAJ – Muitos ainda tentam centrar o debate sobre o SBTVD no padrão a ser adotado, americano, japonês ou europeu. Esta realmente é a questão principal a ser definida? Como vocês avaliam o desenvolvimento do SBTVD em laboratórios, centros tecnológicos e universidades brasileiras? Esta caminhando numa perspectiva de independência científica e tecnológica nacional ou também está à mercê dos interesses do grande capital nacional e internacional?

Maria José Braga – A FENAJ e o FNDC têm dito que a escolha do padrão tecnológico é uma questão menor no complexo debate sobre a digitalização. O que é fundamental é o governo e a sociedade brasileira definirem o que querem com a digitalização e, a partir dessa definição, escolher o padrão que melhor sirva ao projeto nacional. O governo brasileiro acertou ao propor o desenvolvimento de um sistema brasileiro de TV digital, no qual o padrão tecnológico é apenas um dos componentes. Nesse sentido, o Brasil pode vir a adotar um dos padrões já existentes ou um sistema misto no qual, a partir da base de um dos padrões, haja a incorporação de tecnologias desenvolvidas no Brasil e, portanto, melhor adaptadas às nossas necessidades.

Celso Schröder – O melhor padrão será aquele que tiver melhor interface com os outros padrões e, principalmente, que melhor possibilitar a convergência tecnológica apontada no decreto de criação do SBTVD. O que esperamos das pesquisas que estão sendo desenvolvidas no Brasil é que nos seja apontada a melhor alternativa para as nossas necessidades específicas. Uma das questões positivas da instituição do SBTVD foi a criação de 22 consórcios de pesquisas que envolveram várias universidades e instituições brasileiras. Em que pese os poucos recursos destinados aos consórcios e o exíguo tempo que nossos pesquisadores tiveram, os resultados já começam a aparecer e de forma bastante positiva. Dia 21 de dezembro, o CPqD (fundação que coordena as pesquisas sobre o SBTVD) vai entregar ao MinCom um relatório com os principais resultados das pesquisas desenvolvidas pelos consórcios. Mas já se sabe de importantes avanços na área de desenvolvimento de softwares e de interatividade.

E-FENAJ – O Lotar Kaestner, de Curitiba, registra que o Brasil é o 56º país em liberdade de imprensa no mundo. Ele considera que o maior inimigo da liberdade de imprensa é o governo arrogante e pretensioso. E lhes pergunta: a demora na implantação da tv digital está relacionada a isto?

Celso Schröder – Respeito a opinião do Lotar, mas discordo dela. O maior inimigo da liberdade de imprensa no Brasil, como de resto na maioria dos países democráticos, não é o governo “arrogante e pretensioso”. O maior inimigo da liberdade de imprensa é a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos empresariais, uma realidade mundial e não apenas brasileira. No Brasil, por exemplo, a legislação permite a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Isso significa que um mesmo grupo empresarial pode ter, numa mesma localidade, emissoras de rádio e de TV, jornais impressos e portais de internet. A propriedade cruzada, obviamente, causa grandes prejuízos à diversidade e à pluralidade de informações e opiniões. É por isso que uma das lutas centrais da FENAJ é a democratização dos meios de comunicação. A FENAJ é uma das entidades criadoras e mantenedoras do FNDC.

Maria José Braga – Apesar de a digitalização da TV aberta no Brasil abrir possibilidades para a democratização do acesso aos canais de difusão, a “demora” na implantação da TV digital não está relacionada a tentativas de cerceamento à liberdade de imprensa. Na verdade, não existe tal “demora”. A FENAJ, o FNDC e outras entidades que participam do CC SBTVD têm insistido que não estamos atrasados na implantação da TV digital. A digitalização da TV é uma tecnologia que ainda está sendo testada e debatida nos principais países do mundo. Decisões que envolveram gastos de milhões de dólares foram revogadas na Inglaterra, por exemplo, em função de limites da própria tecnologia. Por isso, o tempo gasto nas pesquisas e no debate acerca da digitalização deve atender essa intrincada e complexa rede de decisões. Não precisamos e não devemos ter pressa. A pressa atende a apenas uns poucos interesses privados e não ao interesse da sociedade brasileira. Quem tem pressa é a rede Globo que quer sair na frente das demais redes e manter sua hegemonia. É uma balela essa história de que estamos atrasados. Basta sabermos que são poucos os países do mundo nos quais começou o processo de digitalização, que aliás ainda não foi concluída em praticamente nenhum deles. Temos de acabar com essa história de que os brasileiros têm o direito de assistir à copa de 2006 numa TV digital. Mesmo com a pressa da Globo, endossada pelo MinCom, serão pouquíssimos privilegiados que terão esse direito, caso não consigamos fazer o governo aprofundar o debate como achamos ser necessário.

E-FENAJ – Para finalizarmos, eis duas questões encaminhadas pela Eliane Souza, de Belo Horizonte. Ela inicialmente considera que, no tocante ao debate do SBTVD na sociedade, isto está muito restrito a algumas universidades e entidades de comunicação e cultura. E critica que mesmo os Sindicatos dos Jornalistas deram pouca ênfase a esta questão. Ela pergunta se não há como capilarizar este debate para outras entidades de expressão nacional como ANDES, CUT, MST, Igrejas, etc.? Pergunta, também, quais os próximos passos da FENAJ e do FNDC quanto a este tema?

Maria José Braga – O desafio que estamos enfrentando é justamente o de envolver a sociedade civil organizada nesse debate e o de conseguir aliados entre os agentes políticos do país. A FENAJ e o FNDC querem, por exemplo, que os deputados e senadores também debatam a digitalização, assim como setores importantes do governo, como os ministérios da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento Econômico e Industrial. Vamos dar os próximos passos percorrendo este mesmo caminho: denunciar os problemas que diagnosticamos, apresentar propostas e buscar aliados.

Celso Schröder – Nada mais difícil no Brasil do que fazer um debate que a mídia não deseje. E, nesse momento, a mídia quer que a sociedade saiba somente que uma maravilhosa tecnologia estará a seu dispor no prazo mais curto possível. Também quer fazer o público acreditar que se trata de uma escolha apenas técnica (a de um padrão já existente) e que, por isso mesmo, o público não tem nada a ver com isso. Tem sido nosso esforço tentar romper o silêncio da mídia e também a aridez do tema, que parece inacessível para muitos. Estamos tentando despertar na sociedade o interesse por esse debate, que vai influenciar a escolha mais importante — que a escolha da plataforma tecnológica e industrial — desde a luta pelo petróleo, pelo domínio do aço e da química fina que travamos nos anos 40, 50 e setenta, respectivamente.

E-FENAJ – Obrigado por sua contribuição, colegas. Para encerrar 2005, o próximo convidado de nossa coletiva virtual é o presidente da FENAJ, Sérgio Murillo de Andrade. Ele fará um balanço das lutas dos jornalistas neste ano de muitas movimentações. Para participar, encaminhe perguntas até as 18 horas do dia 27 de dezembro para boletim@fenaj.org.br, especificando, na linha de assunto, “Entrevistas da FENAJ”.